A pele é lama que a luz transforma em ouro?

Assista ao filme

Pintura de Klimt – Adele Bloch- Bauer. Assista ao filme “Woman in Gold” do diretor Simon Curtis sobre a luta judicial travada entre a família e o governo austríaco pela posse da pintura.

Em mais um dia cinzento, durante a II Guerra Mundial, outra rica família austríaca teve sua casa invadida em Viena, por homens refletindo cães, todos os bens da casa foram subtraídos, suas vidas alucinadas, seus corpos intoxicados e tornados explosivos; na extremidade última do ser originam-se as mãos do inconsciente, prontas para a fuga, para a separação ou mesmo para matar.

Junto aos bens roubados está o retrato de Adele Bloch-Bauer, realizado entre 1903 e 1907 por Gustav Klimt.

Em 1903 o artista baixo, atarracado, metido em uma longa túnica preta, prepara e afaga, com a mão experiente, mais uma superfície branca, sedosa e macia, ainda virgem, para receber as estocadas de um pincel firme e também delicado, que deixa escorrer o líquido denso e tépido, lentamente espalhando e cobrindo toda a superfície do corpo planificado que não se move, tenso. Um momento irrespirável e singular, a glória sem o esplendor, o êxtase sem a transcendência, a escuridão sem o medo. Em 1907 a obra de Klimt finda.

O rosto melancólico, na pintura, não se altera nas mãos dos nazistas, o ouro permanece em suas lâminas, a suástica já está exposta nos cinco quadrados vermelhos, ao lado do rosto da modelo, sobre o plano dourado que sustenta o corpo de Adele. Flutuam espirais, ao redor, que nos falam à alma dizendo: estamos todos ligados eternamente uns aos outros, carrascos e condenados, não há fuga possível, não há morte, tampouco vida, apenas um fluxo continuo e indiferente, desinteressado por nossa humanidade.

A pintura de Klimt é geométrica como são os arabescos persas, com sua espiritualidade linear e plana, como toda tradição transcendental pré-cristã, seja primitiva, oriental ou nórdica. O que resta de orgânico na pintura de Klimt, além do seu código semiótico, é a ideia da decadência, acidez e morte, nos olhares saídos das páginas de Oscar Wilde, na fluidez e vaporosidade dos corpos também pintados por Whistler ou Aubrey Beardsley, mas também na permeabilidade absoluta de uma pele acessível a qualquer ataque vindo do exterior, seja biológico ou sensitivo.

A pele de Adele, que neste retrato ocupa apenas uma décima parte da obra, tem força suficiente para combater impassível o infinito universo dourado imposto por Klimt à sua modelo. Pele do rosto, colo, ombros, antebraços e mãos que dobram-se sobre si mesmas, curvas, uma está contrita a outra afaga, revelando no espirito algo como um frêmito aristocrático, pressentimento de uma atmosfera nervosa se avizinhando. Adele estaria vendo uma tempestade, com suas nuvens pesadas, no horizonte do novo século? Ou o seu próprio fim?

Todo o restante da obra é o fluxo seminal da roupa/trono, vestindo, formando, envolvendo, penetrando e elevando Adele, um caudal incontido que verte sem fim. Seus cabelos negros mantém sua imagem no campo da pintura, não permitem a Adele evolar-se ou dissipar-se no grande dourado circundante, seus cabelos fazem com que permaneça pele e olhar, que além de melancólico revelam um prazer secreto.

As pinturas de Klimt são, antes de tudo, rios que refletem o sol, seus troncos, formas passantes, volutas líquidas, margens mutantes, peixes elipses, barcos e flutuantes da sinuosidade, e todas as suas imagens escondem as próprias noites, o ópio da dor, o pulso da carne, sua inexorável putrefação.

Uma obra poderosa que descarna e congela o momento essencial da Viena do fin de siècle.

Is skin mud that light turns into gold?

In another gray day during the Second World War, another rich Austrian family had their home invaded by men reflecting dogs in Vienna, every asset was subtracted from the house, their lives had gone insane, their bodies were intoxicated and turned into explosives; in the ultimate extremity of the being, the hands of unconscious were originated, ready to run, to separate, or even to kill.

Among the stolen goods was the Portrait of Adele Bloch-Bauer, painted between 1903 and 1907 by Gustav Klimt.

In 1903, the small, stocky artist, into a long black tunic, prepares and caresses, with experienced hands, one more silky and soft, yet virgin, white surface to receive the thrusts of a firm but also delicate brush, that lets the dense and tepid liquid pour down, slowly spreading and covering all the surface of the plain body that doesn’t move, tense. A singular and unbreathable moment, glory without splendor, trance without transcendence, darkness without fear. In 1907, Klimt’s work ends.

The melancholic face in the painting doesn’t change in the hands of the nazis; gold remains in its layers, the swastika is already exposed in the five red squares, right on the side of the model’s face, above the golden that sustains Adele’s body. Floating spirals talk to our souls, saying: we are all forever connected to each other, there is no possible run, there’s no death, not even life, just a continuous and indifferent flow, uninterested for our humanity.

Klimt’s painting is so geometric as the Persian arabesques are, with their linear and plain spirituality, like every transcendental pre-Christian tradition, that being primitive, oriental, or nordic. What is left from organic in Klimt’s painting, besides its semiotic code, it’s the idea of decadence, acidity and death, in the eyes extracted from Oscar Wilde’s pages, in the fluidity and vaporizing of the bodies painted also by Whistler or Aubrey Beardsley, in the absolute permeability of an skin accessible to any attack from the outside, that being biological or sensitive.

Adele’s skin, which in this painting occupies only the tenth part of the work, has enough power to combat, impassive, the infinite golden universe imposed by Klimt to his model. Skin of face, chest, shoulders, forearms, and hands that fold over themselves, curved, one contracted, the other caresses, revealing in the spirit something like an aristocratic wave, a feeling of a nervous atmosphere coming closer. Was Adele seeing a storm, with its heavy clouds, on the new century’s horizon? Or her own end?

All the rest of the work is the seminal flux of the cloth/throne, wearing, forming, involving, penetrating, and elevating Adele, a untamed torrent that pours without stop. Her dark hair maintains her image in the camp of the painting, doesn’t permit Adele to fly or dissipate in the big surrounding gold, her hair makes remain her skin and look, which, besides being melancholic, reveal a secret pleasure.

Klimt’s paintings are, first of all, rivers that reflect the sun, its trunks, passing forms, liquid volumes, mutant margins, ellipsis fishes, boats and floating of sinuosity, and all of these images hide their own nights, the opium of pain, the pulse of flesh, its inexorable putrefaction.

A powerful work that disincarnates and freezes the essential moment of the fin de siècle Vienna.

Watch the movie Woman in Gold, by director Simon Curtis, about the judicial fight among the family and the Austrian government for the possession of the painting.

2 comentários sobre “A pele é lama que a luz transforma em ouro?

  1. Acabo de ver “Bridges of Spies” de S. Spielberg con roteiro de los hermanos Coen, basado en hechos reales y donde un abogado, como en el caso de la pintura de Klimt, intenta restituir, en este caso seres humanos, a sus destinos originales.
    Alguna atracción magnética vinculan a estas películas, más allá del hecho judicial. El rescate de dos prisioneros a cambio de la devolución de otro y la restitución de una obra de arte a sus dueños originales son paradigmas del movimiento inusual y patético que tiene la historia cuando el poder de turno decide invisibilizar sus actos, logrando por acción u omisión, absolutamente todo lo contrario.
    Lo que subyace permanece replegado en la historia cotidiana, donde el espionaje y el hurto se dan la mano a la vuelta de la esquina, o en la esquina de una paleta de colores on line.

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    • Me parece que aquilo que, em muitos casos, poderia passar simplesmente por um desejo individual sobre um objeto ou pessoa, no caso, desejo de posse, significa algo muito maior e perverso.
      A intervenção neste campo do fluxo de vida é mais poderoso do que assassinar alguém, é como anular alguém ou algo, sem permitir que a morte transforme, como sempre faz, a alma e o corpo.
      Anular, deformar, calar, controlar, estes verbos estão no substrato das forças que não nos permitem esquecer KASPAR HAUSER.

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