Trabalho de Juliana Hoffmann sobre foto
O corpo é o que desperta a dor profunda e pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambos precisam de solidão.
Walter Benjamin
Tenho encontrado certa dificuldade para me emocionar diante da produção das artes visuais dos dias atuais. Poucos trabalhos me movimentam internamente com vigor ou conseguem tocar meu inconsciente, meus instintos, minha alma. Normalmente tenho de recorrer aos argumentos racionais, às referencias históricas, ou à dimensão do impacto do discurso social, banalizado, para criar uma conexão um pouco mais forte com a imagem apresentada diante de mim.
Mas quando a arte vem ao mundo corporificada por um artista que pensa através de suas mãos; quando conseguimos escutar a mensagem que sobrevive no mais profundo abismo de quem se expressa, vinda diretamente de sua ancestralidade; quando revelamos as imagens, cores e ritmos que pertencem a todos os seres; quando essa arte já não possui mais geografia, língua, ou adereços específicos (mesmo que essa arte seja filha de um indivíduo solitário em alguma vila isolada); aí sim essa arte ganha uma dimensão singular. Ela tem verdadeiramente o que dizer, imagens que instantaneamente aderem ao nosso paraíso, purgatório ou inferno.
Trabalho de Juliana Hoffmann sobre foto
Foi exatamente essa experiência que encontrei diante dos trabalhos de Juliana Hoffmann, na exposição chamada “Sobre Viventes”. Um trabalho profundo, íntimo, de uma sensibilidade incomum e rara, além de uma técnica rigorosa. Sua singularidade está no mergulho que dá para dentro do seu próprio ser mais profundo. Uma caminhada longa feita por entre corpos familiares, músculos e tecidos conhecidos, florestas antigas, velhas paisagens. Vejo naquelas imagens, (pinturas, fotos, páginas antigas, costuras e suturas) as entranhas da própria artista sendo apresentadas ao fruidor.
Juliana foi em busca dos frutos mais altos da árvore, não se contentando com aqueles que estavam à mão, não procurou os atalhos, não se recusou a sacrificar os resultados fáceis e precedentes. Percebe-se que levou ao limite os elementos manipulados, mas de forma fluida, simples, sem nenhuma afetação visual, com um rigor digno das grandes obras.
A cor da carne, seus poros pontilhados sobre a pele, linhas ou eixos ligam tendões, veios, artérias, nódulos, elementos que pululam por toda a mostra. Presentes nos ocres, nos diversos matizes dos terras, nas texturas e rugosidades, no caráter orgânico das imagens. Este universo me remeteu para a frase atribuída a Rembrandt: “A pele é lama que a luz transforma em ouro”. A exposição de Juliana trata de uma dissecação dos corpos biológicos e espirituais, e aí reside sua grandeza, não existe nos trabalhos um discurso redutor ou raso. Pelo contrário o som das formas vem de longe, é imemorial, complexo e amplo. Suas imagens nos chegam através de cavernas profundas, da escuridão do sono, do silêncio da morte.
Trabalho de Juliana Hoffmann sobre foto
As imagens vêm a nós como também vêm as massas de luz por detrás dos fragmentos sombrios do primeiro plano, mais próximos do fruidor. A sensação de profundidade conseguida por JH nestas pinturas da mesma forma revelam uma grande maturidade de sua técnica. As massas de cores claras estão no mesmo plano das cores escuras, não existe nenhuma artificialidade, como: diluição, recurso de perspectiva, para conseguir o efeito de profundidade que se deseja. A relação entre as massas de cores claras e escuras sugam e repelem o observador simultaneamente.
Na arte que JH apresenta o profundo e o superficial, o primeiro plano e o distante, são uma e a mesma coisa: pintura. Elementos acoplados, como se fora uma metáfora sobre a extrema semelhança entre essência e aparência, entre transcendência e imanência, presença e ausência. Estes elementos (aparentemente distantes em qualquer imagem convencional) se encontram rigorosamente no mesmo plano pictórico, com o mesmo peso e carga de tinta, causando um estranhamento e um desconforto para olhares mais desatentos.
Pintura de Juliana Hoffmann
Já as linhas, os pontos, as perfurações, as sombras e as luzes formam um conjunto harmônico, intenso e expressivo. Nos diversos formatos (pequenos com dez cm e grandes com mais de um metro) a força expressiva é a mesma, isso comprova a resistência e a intensidade das imagens criadas. Forma, conteúdo e as mídias (ou o “plano básico” como dizia Kandinsky) escolhidas por Juliana estruturam solidamente cada uma das obras.
Trabalho de Juliana Hoffmann sobre foto
As linhas ou suturas, que amarram as imagens, as vejo como eixos de um outro universo particular. As linhas costuradas através da rede de pontilhado branco, luminosa criam imagens que se projetam da pintura, uma sobreposição em camadas. Este requinte técnico nos retira de um plano e nos coloca em um contraplano, novamente no campo da biologia, estes pontos luminosos me remeteram ao efeito mágico da bioluminescência que observamos nos oceanos com seus plânctons, algas e bactérias. Um elemento úmido que compõe os pântanos imagéticos de Juliana, com suas sombras, frestas de luz, raizes e corpos dissecados.
Citando Kandinsky mais uma vez quando ele nos diz no seu livro “Ponto e Linha sobre o Plano: Todos os fenômenos podem ser vividos de duas formas. Essas duas formas não estão arbitrariamente ligadas aos fenômenos – decorrem da natureza dos fenômenos, de duas das suas propriedades: Exterior e Interior.”
O ponto essencial destes trabalhos de Juliana, é a precisão com que arranca a imagem “interior” e a plasma em um plano para revelá-la ao “exterior”. Sendo que ambas as propriedades são uma e a mesma coisa, é visível a unidade entre a mensagem subjetiva, intuitiva e a sua revelação física, material. Nesta fronteira reside o que sentimos diante da obra vigorosa e contundente de JH.
Pintura de Juliana Hoffmann
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