O que é invisível em nós

Você realmente conhece, em profundidade, aqueles que vivem no seu entorno? Família, amigos, companheiros de trabalho, antigos colegas de escola? Pessoas com quem você se relaciona – com mais ou menos intimidade e frequência – e que por estarem mais próximas fisicamente “parecem” que também o estão espiritual, intelectual ou mesmo eticamente. Cria-se nestes casos uma falsa ilusão de semelhança, por proximidade e transferência, que pode permanecer assim nos períodos de calmaria e tranquilidade, podendo inclusive durar anos, até que num determinado momento de tensão extrema, crise de grandes proporções, doenças graves, tragédias existenciais, a verdadeira face daqueles que nos rodeiam aparecem com toda a sua força. E nem sempre são tão belas como as víamos no passado tranquilo e idílico.

Nestes momentos se corporifica, através da surpresa e da decepção, a angústia por termos convivido tanto tempo com um ilustre desconhecido.

Estas “falsas ilusões” e suas futuras “destruições” acontecem recorrentemente, por exemplo, em famílias que crescem unidas por 10 ou 20 anos, com aparente perfeição e após uma separação traumática alguns dos personagens dessa história se revelam verdadeiros algozes daqueles que até então eram o principal motivo de sua vida. Alguns pais ou mães após uma separação, conseguem abandonar completamente filhos revelando toda a sua crueldade, até então desconhecida.

Quem não conhece histórias assim, em sua própria família ou de conhecidos, onde se “descobre” um parente próximo anteriormente idealizado em pedestal dourado, embalado por nossos sonhos mais ingênuos, cultuado em um paraíso artificial, envolto em luzes, imagens suaves e angelicais, despencar ao inferno mais abjeto e cruel, quebrando sua máscara e expondo a hipocrisia por traz da pose intocável, após um trauma que traz a tona a verdadeira personalidade e caráter, invisível até então?

Quando penso sobre este tema da dissimulação humana (deliberada ou não) sempre imagino que se fôssemos uma casa, a menor parte dela seria aquela que é visível: a porta de entrada, as janelas, a sala, a cozinha e os quartos. Já o sótão seria muito maior e o porão imenso, estas áreas pouco iluminadas, úmidas, é que escondem a maior parte do “ser” que nós somos e que os outros não conhecem. Na maioria das vezes este “ser” está escondido, silencioso, porque não pode se manifestar. Porque sua voz iria contra o discurso da  maioria, por vergonha ou insegurança. Porque suas opiniões mais violentas, radicais, sua “solução final” para problemas perturbadores, seu desejo de fazer justiça com as próprias mãos, sua vontade de resolver problemas complexos com passes de mágica, não teriam eco ou respaldo legal no seio da sociedade. O conservador não reconhece a dialética, não compreende a empatia, não encontra razão no respeito às diferenças.

Mas até aí são apenas as nossas questões íntimas e percebida em nosso entorno. É uma disputa de igual para igual, onde homens e mulheres lutam por suas crenças, mesmo que isso possa causar mais ou menos sofrimentos.

Porém minha apreensão cresce quando o discurso oficial de um país ajuda a abrir  as portas para que os “sótãos e porões” comecem a falar descontroladamente. Abre frestas, nas conquistas da civilidade e do respeito, para espalhar as ameaças e sombras da irracionalidade, intolerância e do obscurantismo. Quando o discurso oficial possibilita o contato e a articulação dos infernos individuais com uma coletividade ainda alienada, buscando soluções com uma arma na mão esquerda, uma bíblia na mão direita, discurso de ódio, fobia e polarização, então é quando estamos caminhando a beira de um abismo.

Entendo que o processo civilizatório é assim mesmo. Ele se dá a partir da fricção cultural, material e anímica entre indivíduos e destes com a coletividade. Me parece que ninguém entra e sai desta vida sem se transformar. A própria imposição natural do envelhecimento nos passa esta mensagem de forma inexorável. E felizmente governos e governantes também passam, envelhecem e morrem, por mais autoritários e ditatoriais que sejam.

Mas aí você se assusta quando aqueles que, até então, parecendo civilizados, que convivem ao seu lado diariamente, iniciam um discurso de ódio, de intolerância, pregando divisionismo, berrando por fechamento de instituições e agindo com desrespeito às leis e às conquistas da civilização.

E então você se pergunta por que essa pessoas, velhas conhecidas, que pareciam equilibradas e civilizadas agora gritam desta forma irracional a plenos pulmões: “Nós” somos a verdade e “Eles” representam o mal?

A resposta é: porque estão abrindo as portas do inferno humano, que habita em um Brasil mais profundo, que já era assim de longa data, que estava a espreita, aguardando alguém que liberasse oficialmente as palavras ódio e intolerância. Se insistirmos neste caminho perderemos o controle e finalmente se  mostrará, em breve, qual a dimensão do seu conteúdo de horror e o tamanho dos nossos conservadores porões brasileiros.

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