O Nobel e o paraíso

O Jardim das Delícias Terrenas do pintor Hieronymus Bosch

Peter Handke não é Slobodan Milošević, Martin Heidegger não foi Adolf Hitler, Lúcio Aneu Séneca não foi Nero Cláudio César, Hannah Arendt não foi Adolf Eichmann, André Breton não foi Josef Stalin, bem como o Nobel de literatura não é um passaporte para o paraíso. Quando muito um ingresso no parnaso oficial (uma espécie de academia espiritual das letras), onde não consta a foto da maioria dos grandes gênios da literatura mundial.

Salman Rushdie pode ter o direito de chamar Peter Handke – vencedor do Nobel de Literatura de 2019 – de idiota mas, por experiência própria, deveria saber o que significa receber uma espécie de fatwa literária, por um posicionamento ideológico, sem que isso esteja realmente embasado em qualidade literária. Sobrou mediocridade, faltou respeito e tolerância. A opinião de Rushdie, bem como de vários intelectuais, mais ou menos engajados, é de ordem moral, moralista eu diria, e deveria se restringir apenas ao comportamento de Handke, portanto não poderia estar ligada a um impedimento para a premiação do Nobel.

Legítimo que se faça uma crítica dura sobre o apoio de Handke às ações da Sérvia contra os seus países vizinhos (embora ela já tenha sido feita em 2006), mas se for feita uma crítica ao recebimento do Nobel que seja no campo da literatura.

A destruição moral e pessoal da imagem de grandes artistas não é novidade. Filmes, biografias, documentários, artigos panfletários, entrevistas para publicações marrons, enfim são várias as ferramentas para desconstruir a imagem do ponto de vista de comportamento, do reacionarismo das opiniões, do machismo exacerbado, da ideologia conservadora, dos preconceitos raciais, dos equívocos históricos. Não vejo problema nestas ações que buscam “humanizar” os “gênios”.

A lista seria incontável, mas lembraremos apenas alguns exemplos mais recentes. Auguste Rodin, Pablo Picasso, Alberto Giacometti, Diego Rivera, Jean Genet, Jean-Paul Sartre, Roman Polanski, Woody Allen, além de todos os contemporâneos atores, diretores recentemente acusados de estupro e assédio, na indústria cinematográfica, em uma verdadeira caçada moralista, de onde não se escapa do menor deslise.

Não estamos aqui para defender ou colocar para baixo do tapete o estupro, o machismo, o desrespeito a dor alheia, o racismo, a misoginia, a guerra ou os genocídios. Mas tampouco desejamos o estupro das ideias.

Então a pergunta que fica é a seguinte: Deve um homem ou mulher ter sua obra desqualificada por seu comportamento político ou social? Pode uma mulher ou homem com ideias reacionárias, conservadoras ou mesmo intolerantes e preconceituosa produzir uma grande obra? Penso que as respostas estão na própria história humana, nos seus diversos casos e relatos. Afinal não são poucos os artistas que após uma vida de intensa produção da melhor qualidade, deixam a sua volta, além das obras, apenas um rastro de destruição de outras vidas, de sofrimento e incompreensão dos seus.

Me perturba essa assepsia moralizante do nosso tempo que, por vezes, soa oportunista, hipócrita e demagógica. Ainda persiste na vida e na morte muita carne, muito sangue, muita dor, muita violência e muita ignorância. E para cada uma destas palavras apenas uma pequena dose da sua antítese. Temos que trabalhar individualmente para que as antíteses se sobreponham, mas sem querer acabar com os seus contrários por decreto ou censura prévia.

Conta a história que em 1812 Ludwig van Beethoven e Johann Wolfgang von Goethe encontraram-se. Alguns defendem que mesmo respeitando muitíssimo, entre si, as respectivas obras, não se gostaram, não se entenderam como pessoas, suas visões de mundo eram antagônicas. Felizmente não houve censura ou veto a nenhuma das obras em função do comportamento. A humanidade não poderia prescindir da literatura de um, tampouco da música do outro.

Uma das grandes lições sobre como fazer arte trabalhando com os contrários, retirando deles, com criatividade, sensibilidade, sem fazer julgamento de valor, a obra que sempre nasce na fricção, está no documentário “Meu maior inimigo”Mein liebster Feind – de Werner Herzog, sobre sua tumultuada relação com Klaus Kinski. Um filme que merece ser visto, principalmente neste mundo momentaneamente radicalizado em intolerância e polarização.

Nada mais precisa ser acrescentado à explicação abaixo feita por Herzog.

Werner Herzog: “People think we had a love-hate relationship. Well, I did not love him, nor did I hate him. We had mutual respect for each other, even as we both planned each other’s murder”.

Tradução:

“As pessoas acham que nós mantínhamos uma relação de amor e ódio. Bem, eu não sentia amor por ele, nem o odiava. Nós nos respeitávamos mutuamente, mesmo que tivéssemos cada um planejado assassinar o outro”.

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