O amargor da derrota

Os comedores de batatas – 1885 – pintura de Vincent Van Gogh –

Escrevo hoje para aqueles que já perderam ou estão a caminho da derrota. Perderam emprego, perderam renda, perderam sua casa ou empresa. Brasileiros que viram suas vidas recuar como uma maré baixa, inexorável em seu refluxo. Gente trabalhadora que havia alcançado alguma dignidade com trabalho, renda, educação, crescimento profissional e pessoal. Agora sugados de volta à noite das angústias e incertezas

No primeiro trimestre deste ano eram mais de 13 milhões de brasileiros sem emprego. Mas os números não param por aí temos ainda outro dado que comprova o desespero de mais de 28 milhões de brasileiros, entre desocupados, subocupados, com menos de 40 horas de jornada e pessoas disponíveis para o trabalho, além de 4,8 milhões de brasileiros chamados pelo IBGE de “desalentados”, pessoas que desistiram de buscar emprego e desaparecem dos números oficiais. Portanto, o problema do desemprego atual no Brasil é muito maior do que se apresenta superficialmente.

Estes homens e mulheres que haviam conseguido, com muito esforço, atingir o estágio social da dignidade e da cidadania através de trabalho, estudo e, consequentemente, da renda, infelizmente foram sugados para o seu passado recente de miséria. Vítimas de um processo econômico injusto e recorrente no Brasil que concentra a renda nacional, retornaram para os níveis mais baixos da pura sobrevivência, nas ruas, barracos, convivendo com a violência e a precariedade. Foram jogados de volta no pântano selvagem onde a luta é feroz no dia a dia e nem sempre justa com aqueles que nele se movimentam para resistir.

Vamos lembrar que quase 27,8% da renda do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos mais ricos, a maior concentração deste tipo no mundo. O Brasil voltou a excluir sem previsão de mudança neste cenário.

Mas pior do que os números pode ser aquilo que fazemos com eles. Alguém deseja reverter esta realidade trágica? Como a sociedade brasileira “empregada” enxerga estes “derrotados desempregados”?

Alguns (principalmente os que defendem meritocracia) acreditam que os derrotados sofrem por sua própria incompetência, indolência, ou o que é pior, genética. Em outros casos pessoas que possuem uma visão totalmente religiosa da vida afirmam que pobres são pobres e ricos são ricos porque deus quis assim. Uma espécie de Karma imutável em sua essência. Estas visões obscurantistas servem apenas para afastar a possibilidade de uma grande mobilização no Brasil visando reduzir as desigualdades dentro da sociedade. Sejam elas realizadas pelo terceiro setor, por filantropia ou políticas públicas que estão desaparecendo no Governo Federal.

São respostas equivocadas que apenas aliviam a consciência dos que as pregam. Todos sabemos que nossas oportunidades iniciais quando crianças deveriam ser as mesmas (como acontece em países mais justos socialmente). A brutal diferença entre nascer em uma família que luta basicamente pelo alimento diário ou nascer em famílias com o conforto material e o acesso cultural, resulta em um ponto de partida imensamente desigual, para crianças que pela lei são iguais e têm os mesmos direitos. Livros fazem diferença, cinema, arte, viagens, relações interpessoais, tecnologia, etc. O acesso a estes bens faz muita diferença para o desenvolvimento pessoal e profissional de qualquer um.

Sempre haverão aqueles que apresentarão casos de pessoas que venceram em meio a grandes adversidades. Correto, é importante mostrar estes casos para estimular as pessoas a lutarem, independentemente das dificuldades, mas não podemos confundir a excessão com a regra, apenas para confirmar nossa tese. Isso é maniqueísmo.

Se desejamos realmente trabalhar pela redução drástica da desigualdade em nosso país temos que apoiar de forma mais intensa aqueles que mais precisam, aqueles que caminham praticamente fora das fronteiras da cultura e da economia. Não podemos abandonar aqueles que não encontram forças suficiente para romper os limites das suas próprias tragédias. A sociedade brasileira tem deixado pelo caminho muitos daqueles que estão mais fracos, que tem suas próprias dificuldades ou limites.

Cito como exemplo as crianças que hoje nascem com doenças limitadoras: O que deve fazer atualmente a família de uma criança que nasce com síndrome de Down? Antigamente escondia-se a criança. Hoje estimula-se ainda mais, dando a essa criança maior atenção e recursos do que são necessários a uma criança sem a síndrome. O estímulo ampliado é uma forma de suprir uma desvantagem inicial. E os resultados são fantásticos, o desenvolvimento e os avanços que estas crianças estão atingindo são inacreditáveis.

Portanto, se as crianças brasileiras não têm as mesmas condições ou oportunidades quando nascem, me parece claro que devemos (governos e sociedade) ampliar os esforços sobre os mais frágeis para reduzirmos o impacto da desigualdade inicial entre as crianças brasileiras. Seja esta desigualdade causada por um problema genético, material, cultural ou econômico.

Definitivamente não me parece razoável atribuir o sucesso de um individuo como sendo fruto que nasce apenas na árvore do trabalho ou mesmo da obstinação, ou ainda que o Karma defina a vida de alguém. Estas afirmações escondem intenções ainda mais perversas. Elas buscam “naturalizar o mundo dos ganhadores, mas também o dos perdedores”, imobilizando a vida em castas e rotulando quem pode ou não ascender. Esta é a pavimentação do caminho que levará o Brasil ao aprofundamento ainda maior das desigualdades.

Os “vencedores” deixam de ter compromisso com os “perdedores”, no campo privado e pessoal. O estado, como tem feito, desacredita as políticas de inclusão social. Ambos, público e privado, abandonam a missão de incluir todos os brasileiros nas fileiras da cultura, da realização individual e do trabalho coletivo.

Um país injusto e desigual precisa de um estado presente e forte para sair da areia movediça que destrói gerações inteiras nas sombras da ignorância, incapacidade e da exclusão. Não me parece que este seja um desafio para ser vencido apenas no campo privado. Um número imenso de crianças e jovens brasileiros hoje já sentem a proximidade tenebrosa da derrota: sua exclusão de empregos (que estão disponíveis no mercado) por falta de formação qualificada, de conhecimento em tecnologia ou domínio de uma outra língua, apenas para citar alguns exemplos.

Infelizmente respiramos novamente os ares insalubres de um Brasil abismal e insensível. Uma sociedade separada entre aqueles que vivem flanando nas altitudes do conforto, modernidade e conhecimento e aqueles que sobrevivem se arrastando nos grotões da precariedade, desconhecimento, obscurantismo e violência.

Mas para os aparentes vencedores fica o alerta: em uma sociedade desigual e injusta, diante do abismo construído entre os mais ricos e os mais pobres, os derrotados são ambos. Ricos e pobres sentirão o amargor da derrota porque quando a imensa maioria vive em desesperança toda a paisagem é intoxicada e o tempo cobrará sua fatura.

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